Texto inspirado na greve dos bombeiros.
Abro
os olhos e vejo uma mistura de vazio e multidão. Cela apertada, gente demais,
mas ninguém ali era conhecido meu. Todos desfocados pelo suor de um cubículo
sem ventilação; todos unidos pelo crime, cometido ou não. Alguns são tão pobres
que nem o nome sabem escrever. Outros têm dinheiro bastante para sair dali na
próxima semana. Nunca se sabe quanto tempo se fica e em quanto tempo se sai. A
cela é uma inexatidão.
Tento
me mexer, a cama geme, todos me olham, e logo desisto. Nem pra me virar dá. O
estômago grunhe, grita por comida. Mais tarde tem sopa, se eu me comportar.
Minutos depois ele embrulha, porque o amigo do outro lado resolveu usar o “banheiro”,
e o cheiro inundou o lugar. Pior é depois do jantar. Descarga é só em casa de
rico, na cadeia, a merda fica lá.
Penso
no mundo lá fora, na família que deixei em casa. Minha mulher
deve estar preocupada, ou acampada em algum lugar, lutando por nós. Na tevê
devem estar falando mal da gente, como sempre, né? Ou será que estão agindo
contra o Senhor Executivo? Não, acho que não. Eles nunca fazem isso... Meus
filhos devem estar assustados, minha mãe... Pelo menos quando eu sair daqui
eles terão orgulho de mim. Terão?
O
sinal toca. Hora do banho de sol. Todos logo se amontoam. Esse é o momento que
sempre dá confusão. Afinal, é a única hora em que a gente pode sair, mesmo que
só por pouco tempo.
Lá fora já estava lotado, acho que fomos os
últimos dessa vez. Bolas de futebol improvisadas faziam a alegria dos
aspirantes a Romário. Mas eu, não. Fico num canto e volto a pensar. Tenho
pensado muito nessa semana. Pensei nos meus companheiros de corporação. Metade
presos por não acatarem ordens absurdas. Lembrei do meu superior, 62 anos, o maior
exemplo que eu tive na vida. Ouvi que foi preso um dia depois de mim, e que,
alguns companheiros que ainda estão soltos estão ajudando no Ato. O Ato. Não
sei ao certo o que é. Queria saber o que tá acontecendo lá fora. Nunca
prestaram atenção no salário da categoria, como é que vão brigar por mim? Acho
que ninguém tá dando bola. Acho que eu mesmo não daria.
Olhei pros caras que estavam presos comigo.
Quantos dali também seriam inocentes? Quantos estariam ali porque não têm
dinheiro pra pagar o juiz? Joca disse que nem tem previsão pra sair dali, só porque
mora em comunidade e foi pego roubando leite pra dar pro filho. O salário
mínimo no bolso não deu nem pro aluguel e agora ele tá aqui, sabe-se lá até
quando. Absurdo. E ainda tem o Zé, que matou o cara que tentou abusar da filha
dele e tá aqui há cinco anos. Deve ficar mais uns dez.
Olho pra eles e percebo que eu nunca saberia
disso se não estivesse aqui. Nunca me identificaria com um ladrão, se eu não
soubesse o motivo que o levou a roubar e que, no fundo, ele é um pai de família.
O
sinal toca de novo. Nossa, já passou uma hora? Todos fazem fila pra entrar na
cela, enquanto um carcereiro separa uma briga começada do outro lado do pátio. Na
cela, me espremo na parede do outro lado da cama. Rodízio. Agora é a minha vez
de ficar em pé. Só vou sentar de novo amanhã. O jeito é dormir em pé.
TERÇA....
QUARTA...
QUINTA...
SEXTA.
Manhã. Os carcereiros andam pelo corredor com o rosto diferente. Parecia um
sorriso, mas não posso confirmar. Chamaram alguns nomes e abriram as celas. A
gritaria e os aplausos começaram, mas, ninguém sabia o que estava acontecendo.
Pereira, o mais alto, diz: “Parece que soltaram vocês”, e o meu coração deu um
pulo. Andar pra fora da cadeia, depois de tanto protocolo e burocracia, foram
os minutos mais longos da minha vida.
Eram
tantos flashes, microfone no rosto, que nem pude ver de onde eles saíram, só
sei que não conseguia ver ninguém. Demorei uns três minutos até ver minha
mulher. Estava abraçada com a Denise, mulher do Beto, reconheci pela foto, e
veio correndo na minha direção. Depois vi os meninos, e minha mãe. Nenhum
abraço ou beijo podia reduzir a falta que eu sentia deles. Tudo era por eles, e
eu faria tudo de novo. Olhei em volta e vi uma multidão de faixas, blusas,
carros passando com fitas vermelhas, e sabe o que fiz? Chorei. E sorri. E
abracei. E beijei.
E
ali eu percebi que a gente só aprende mesmo a ajudar alguém quando é a gente
precisa de ajuda. Ver famílias de tantos colegas unidas, e pessoas que nem tem
nada a ver com a gente, fazendo campanha pra que a gente fosse solto mexeu
comigo. Minha mulher falou: “Agora vem, vamos pra casa”. E eu disse: “Não, vou
esperar todo mundo sair. A gente entrou junto, vai sair junto”. Rumo à
dignidade.
Ana
Carolina de Oliveira.
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