domingo, 13 de maio de 2012

Relatos de um encarcerado


Texto inspirado na greve dos bombeiros.


    Abro os olhos e vejo uma mistura de vazio e multidão. Cela apertada, gente demais, mas ninguém ali era conhecido meu. Todos desfocados pelo suor de um cubículo sem ventilação; todos unidos pelo crime, cometido ou não. Alguns são tão pobres que nem o nome sabem escrever. Outros têm dinheiro bastante para sair dali na próxima semana. Nunca se sabe quanto tempo se fica e em quanto tempo se sai. A cela é uma inexatidão.

Tento me mexer, a cama geme, todos me olham, e logo desisto. Nem pra me virar dá. O estômago grunhe, grita por comida. Mais tarde tem sopa, se eu me comportar. Minutos depois ele embrulha, porque o amigo do outro lado resolveu usar o “banheiro”, e o cheiro inundou o lugar. Pior é depois do jantar. Descarga é só em casa de rico, na cadeia, a merda fica lá.

Penso no mundo lá fora, na família que deixei em casa. Minha mulher deve estar preocupada, ou acampada em algum lugar, lutando por nós. Na tevê devem estar falando mal da gente, como sempre, né? Ou será que estão agindo contra o Senhor Executivo? Não, acho que não. Eles nunca fazem isso... Meus filhos devem estar assustados, minha mãe... Pelo menos quando eu sair daqui eles terão orgulho de mim. Terão?
O sinal toca. Hora do banho de sol. Todos logo se amontoam. Esse é o momento que sempre dá confusão. Afinal, é a única hora em que a gente pode sair, mesmo que só por pouco tempo.

 Lá fora já estava lotado, acho que fomos os últimos dessa vez. Bolas de futebol improvisadas faziam a alegria dos aspirantes a Romário. Mas eu, não. Fico num canto e volto a pensar. Tenho pensado muito nessa semana. Pensei nos meus companheiros de corporação. Metade presos por não acatarem ordens absurdas.  Lembrei do meu superior, 62 anos, o maior exemplo que eu tive na vida. Ouvi que foi preso um dia depois de mim, e que, alguns companheiros que ainda estão soltos estão ajudando no Ato. O Ato. Não sei ao certo o que é. Queria saber o que tá acontecendo lá fora. Nunca prestaram atenção no salário da categoria, como é que vão brigar por mim? Acho que ninguém tá dando bola. Acho que eu mesmo não daria.

 Olhei pros caras que estavam presos comigo. Quantos dali também seriam inocentes? Quantos estariam ali porque não têm dinheiro pra pagar o juiz? Joca disse que nem tem previsão pra sair dali, só porque mora em comunidade e foi pego roubando leite pra dar pro filho. O salário mínimo no bolso não deu nem pro aluguel e agora ele tá aqui, sabe-se lá até quando. Absurdo. E ainda tem o Zé, que matou o cara que tentou abusar da filha dele e tá aqui há cinco anos. Deve ficar mais uns dez.

 Olho pra eles e percebo que eu nunca saberia disso se não estivesse aqui. Nunca me identificaria com um ladrão, se eu não soubesse o motivo que o levou a roubar e que, no fundo, ele é um pai de família.

O sinal toca de novo. Nossa, já passou uma hora? Todos fazem fila pra entrar na cela, enquanto um carcereiro separa uma briga começada do outro lado do pátio. Na cela, me espremo na parede do outro lado da cama. Rodízio. Agora é a minha vez de ficar em pé. Só vou sentar de novo amanhã. O jeito é dormir em pé.

TERÇA....
QUARTA...
QUINTA...

SEXTA. Manhã. Os carcereiros andam pelo corredor com o rosto diferente. Parecia um sorriso, mas não posso confirmar. Chamaram alguns nomes e abriram as celas. A gritaria e os aplausos começaram, mas, ninguém sabia o que estava acontecendo. Pereira, o mais alto, diz: “Parece que soltaram vocês”, e o meu coração deu um pulo. Andar pra fora da cadeia, depois de tanto protocolo e burocracia, foram os minutos mais longos da minha vida.

Eram tantos flashes, microfone no rosto, que nem pude ver de onde eles saíram, só sei que não conseguia ver ninguém. Demorei uns três minutos até ver minha mulher. Estava abraçada com a Denise, mulher do Beto, reconheci pela foto, e veio correndo na minha direção. Depois vi os meninos, e minha mãe. Nenhum abraço ou beijo podia reduzir a falta que eu sentia deles. Tudo era por eles, e eu faria tudo de novo. Olhei em volta e vi uma multidão de faixas, blusas, carros passando com fitas vermelhas, e sabe o que fiz? Chorei. E sorri. E abracei. E beijei.

E ali eu percebi que a gente só aprende mesmo a ajudar alguém quando é a gente precisa de ajuda. Ver famílias de tantos colegas unidas, e pessoas que nem tem nada a ver com a gente, fazendo campanha pra que a gente fosse solto mexeu comigo. Minha mulher falou: “Agora vem, vamos pra casa”. E eu disse: “Não, vou esperar todo mundo sair. A gente entrou junto, vai sair junto”. Rumo à dignidade.


Ana Carolina de Oliveira.

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