domingo, 13 de maio de 2012

A festa da Dona Júlia



         Estava estudando quando o telefone tocou. O copo em que bebia espatifou-se no chão ao som da notícia. “Não, não pode ser!”; a mão à boca personificava o espanto. Vovó enfim descansara, depois de tanto tempo como inquilina do hospital. Tudo o que ela desejava era morrer dormindo, sem sofrimento. Pelo menos isso ela teve.

        A família deveria se reunir em uma hora na capela do Padre Cícero. “Vovó odiava funerais”, pensei. Ela costumava dizer que quando morresse queria uma festa bem barulhenta, pra avisar São Pedro que estava chegando. Ainda no hospital, ela fez uma lista das coisas que queria, caso fosse embora. Escreveu: “churrasco, cerveja, a banda do Dudu, a filha da Nice e as crianças.” Geralmente ela não gostava de crianças em funerais e enterros, mas ela disse que fazia questão de todos os netos e bisnetos no dela, pra garantir que não ia ter ninguém chorando. O Dudu tinha uma pseudo-banda de rock, que a vovó sempre apoiava. Na verdade, acho que ela era a única. E a filha da Nice é aquela prima louca que todo mundo tem. Escandalosa, que fala gritando e puxa todo mundo pra dançar. Toda família tem uma filha da Nice.

        Disse pra minha mãe que não chegaria a tempo do funeral, que ia direto pra casa do Tio Marcos. Tinha que esperar o próximo ônibus no terminal, ainda. Coloquei um vestido claro que vó Júlia gostava. Essa era outra das condições dela: nada de preto, todo mundo com roupa colorida. Um nó apertava minha garganta. “Não acredito que ela não vai estar lá”. Saí para o terminal lembrando o último dia em que a vi, no hospital. Em nenhum momento ela tinha cara de doente, fazia questão de passar batom e ajeitar o cabelo, que gostava de pintar de roxo. A última coisa que ela me pediu foi pra que eu terminasse a faculdade, porque ela queria ver a minha formatura de onde estivesse.  

      Cheguei na casa do Tio Marcos e ele abriu a porta rindo. O cumprimentei e entrei na sala, onde todos os meus tios estavam falando alto, com copo de cerveja na mão, vendo um jogo na tevê. Vi pela janela que meus primos estavam todos no quintal, brincando. Fui pra cozinha, onde as tias fritavam bolinhos de chuva.
- Nina! Você veio! – Tia Regina gritou.
- Claro, tia. Não podia faltar.
- É que eu falei que você tinha prova da faculdade. – minha mãe disse, me abraçando.
- Como essa menina tá crescida. Nasceu outro dia e já tá morando sozinha! – Tia Luiza sempre fazia questão de lembrar de quando eu era criança.
- É alojamento, tia. Tem muita gente lá.
       Ela se aproximou e cochichou:
- É, mas pelo menos você tá longe da sua mãe, né? Eu sei que ela pode ser bem chata. Eu cresci com ela... – Tia Luiza era aquela que fazia os outros rirem. Era a minha tia preferida.
- Vai lá falar com as crianças, Nina. Eles perguntaram por você – minha mãe falou.

        Mal coloquei o pé no quintal, e fui recebida por um jato da mangueira com que os meninos estavam brincando, distraídos.
- Nina! Nina! – Paulinho gritou, fazendo todo mundo correr pra cima de mim. Caí no chão e ficamos rindo e rolando pela grama molhada. “Lá se vai o vestido favorito da vovó”, pensei. Por um momento, lembrei que era por causa da morte dela que estávamos ali, e fiquei triste. Era sempre por causa dela que a gente se reunia. Era ela quem ligava pra todos e marcava os encontros. “Esse é o último que ela arranjou”. Não consegui segurar as lágrimas. Maria Clara deitou do meu lado e me abraçou.
- Fica assim não, prima. Ela também tá rindo. – ela disse, me surpreendendo. “Como é que ela sabe por que eu tô triste? Será que ela tá assim também?”.
- Ô criançada! O lanche tá pronto. – Tia Zuleika chamou. E lá foi todo mundo correr pra dentro de casa, fazendo as mães brigarem, pedindo que se enxugassem, que iam escorregar, que iam sujar o chão limpo e tudo o mais que as mães geralmente gritam. Tinha esquecido de como sentia falta disso. Tirei a sandália e enxuguei o pé antes de entrar; não queria levar bronca também.

        A mesa grande da vovó estava cheia de garrafas de refrigerante, potes com bolinho, guardanapos e copos sujos dos tios da sala. Em meio à zona das crianças e as broncas das mães, eu conseguia ouvir meus tios xingando o juiz e comentando o jogo. Cada um era um pouco técnico. Era engraçado ver como eles interagiam com a tevê, como se os jogadores fossem ouvir seus conselhos e palavrões. Minhas tias faziam o mesmo com as novelas...
- Ô Ricardo, dá pra desligar esse troço e vir comer, homem? Comida é sagrada, sabia?
- Peraí, Zuleika, tá acabando o segundo tem... GOOOOOOL!!! – e começou a gritaria. Eles levantaram do sofá, pulando, e meus primos saíram correndo pra comemorar junto. Miguel derramou refrigerante na blusa da Nayara, que começou a chorar. A confusão estava armada. Lembrei da vovó, que ficava encostada na porta, vendo a família fazendo festa. Seu último desejo foi atendido. Não tinha ninguém chorando. Não tinha ninguém de preto. A família Silva hoje era um misto de cores e vozes e risos e lágrimas, seja por saudades dela, seja pela vitória na Libertadores. Ergui meu copo e sussurrei: “Obrigada, vovó”, e fui gritar “É campeão!” junto com todo mundo. Afinal, família é pra essas coisas.

       
        

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