sábado, 5 de dezembro de 2009

Mataro as criança

Bom, galera, espero que gostem do meu novo conto. Ganhei o segundo lugar no Concurso da Revista Cultural em parceria com a UERJ - FFP com ele. Dêem sua opinião!!!



Mataro as criança

Sinto que morro aos poucos. Não de velhice ou de morte morrida. Sofro de uma síndrome que, aos poucos, mata o mundo. Uma epidemia tão cruel que passa, cínica, pela massa. Sofro de infância perdida. Sofro de sonhos acordados, de fantasias extintas, de castelos inundados. Sofro de realidade aguda, de risos amarelos e de olhares amedrontados. Medo de descobrir que a Fada dos Sonhos não existe de fato. De acordar de repente e ver que a vida da gente não passa de um trem descarrilhado.

- Uma passagem à Ilha da Fantasia, por favor.
- Desculpe, moça. Acabô.
- Como assim, acabou?
- Essa Ilha num existe mais não.
- Não existe mais? O que aconteceu?
- Foi atacada pelos Guerrilhero. Mataro o Rei dos Sonhos e tacaro fogo na coitadinha. Num sobrô nada nem pros meus filho vê.
- Mas que coisa horrível! E pra onde eu vou agora?
- Ah, tem vários lugá em promoção. Afeganistão, Bogotá, Rio de Janeiro, Serra Leoa. Tenho certeza que a senhora vai gostá.
- Mas esses lugares estão em guerra! Não posso ir pra lá!
- Ih, minha senhora, o mundo todo tá em guerra. A gente não tá seguro, não. Seguro, só aquela gente que dá notícia dentro da tevê. Pra eles tá tudo bem. Guerra é só foto e depoimento. A gente tá sozinho nessa, dona. Aquela Ilha era o único lugá que a gente tinha. Mas mataro a Fantasia. Agora é só guerra mesmo. Cachoeira, só se for de sangue. Bicho, só se fô os armado, que mata os irmão.
- E o que eu faço agora?
- Foge pra dentro, dona. Num tem outro jeito, não.
- Mas, pra dentro de onde?
- Da gente mesmo. A Lembrança é a Fantasia que sobrô. A Saudade é a Ilha que eles num conseguiro queimá. Por isso que eles queimaro aqueles livro todo, dona. Purquê aí as criança só tem tevê, num brinca mais na rua, num tem mais história pra durmí. Eles qué é brincá de arma, matá passarinho... Num qué sabê de princesa, não. Trocaro as fada pelos vampiro. Eles mata a sede cum sangue, o sangue das criança. Pur isso é que eu digo, dona, foge pra dentro da senhora. Tranca seus filho em casa, conta história de super-herói, purquê lá fora tem vilão querendo pegá eles. A gente tá perdido, dona. Mataro a Esperança lá na Ilha. Agora o rei das Arma é que manda, num tem jeito, não.

Sofro de realidade crônica, de desapego forçado. Sofro de inutilidade pública, de desamparo, de saudade. Saudade daquele tempo em que se procurava ovo de Páscoa seguindo as patinhas do coelho. Sofro de hematofobia. Chega de sangue, eu quero a Ilha de volta. Aquelas das viagens de minha infância, quando o Rei dos Sonhos abraçava quem chegava; quando a gente ria e voava de mãos dadas pelo Jardim das Flores. Pobre Affonso Sant'Anna e seu Jardim da Infância...
Sofro de adulteza em primeiro grau, de pureza tirada. Vivo com aquele ar amedrontado. Medo de que o Rei dos Sonhos tenha mesmo morrido. Medo de perder a criança escondida no fundo da alma.

Ana Carolina. 05/10/2009.