sábado, 30 de março de 2013

Dança - visão de uma dama

             (Texto originalmente publicado pela autora em seu facebook em 13 de maio de 2012)




       Chego no baile e olho ao redor. Poucos que conheço. Vejo uma mesa com uma conhecida sentada, sozinha, e me aproximo. Cumprimento. Sento. Guardo a bolsa. Observo os outros dançando. Penso nos problemas, nas pessoas e na vida. Tento esquecer. Afinal, eu vim pra dançar. A timidez cruza os braços e as pernas e morde o lábio. Que inveja de gente explosiva, que chega chegando e diz a que veio. Eu me solto aos poucos. Cada um tem de mim um pouquinho, e um pouquinho diferente. Porque quase sempre as pessoas machucam, e é duro você ser inteira de alguém. Essas coisas vêm com o tempo...
       Às vezes sou quieta e tímida, outras vezes sou a alma da festa, a Drag Queen contratada pra animar as bodas. Sou insegura ou zen, ciumenta e amiga, depende de como eu acordei no dia. E o que peço é que aceitem a esquizofrenia. Sem mais. Nem menos. Só o que é. O intervalo de uma música é o suficiente pra pensar em tudo e em nada. Meu Deus, preciso parar de pensar!! Preciso de um remédio pra ansiedade. Pena que não bebo.
       Sinto um toque delicado no ombro. Me viro. Um cavalheiro sorridente estende a mão, pedindo a dança. Aceito. Melhor dançar que pensar. Bolero. Clássico. Calmo. Sofisticado. Exatamente do que eu preciso. Geralmente prefiro algo mais agitado. Mas, hoje, não. Preciso acalentar a mente, senão enlouqueço. Ele me guia nos passos básicos, precisa saber do que sou capaz. Tento obedecer de prontidão, com a postura que o estilo pede. Piso no pé e conto um tempo a mais. Arruino o passo que ele desenhava. Sussurro um “desculpe” triste. Ele afasta a cabeça, sorri e sussurra de volta: “é só relaxar”. Decido seguir o conselho e deixá-lo controlar os passos. Pelo menos na pista de dança, eu me deixaria ser guiada. Ele me gira e, por um segundo, penso que vou cair. Logo ele está do outro lado e me prende pela cintura. Sinto-me segura de novo. O coração está em pulos. É difícil se concentrar quando se gosta de manter o controle das coisas. Aos poucos, ele dificulta os passos, me testando. Aceito o desafio e o sigo. Quase caio de novo, e terminamos a música em meio a uma gargalhada. Ele me leva de volta à mesa. Outro bolero. Vejo os colegas dançando. Engraçado ver como cada um se mexe, se permite. Incrível!!
       O ritmo muda. Uma batida animada e sensual. Outro sorriso estende a mão, e me vejo de novo no teste de confiança. Ele me joga num cambré modesto, depois pra uma sequência de giros e jogadas de cabelo no ar. Danço sorrindo, liberando a Terpsícore¹ exigida pela música. E os movimentos dele guiam os meus. As mãos suaves lideram o caminho, enquanto a cintura mantém o ritmo. Tudo muito sutil. E, então, o cambré final, nos faz voltar à realidade e de volta às mesas. É a dança que conecta as pessoas ali. Sem jogos, sem promessas, nem cobranças. Só dança. E ali eu sou deusa, sou menina, sou mulher, sou dançarina, sou amadora, sou parceira, sou dama, sou feliz. Sem culpas. Sem medo.
     Horas depois, volto pra casa feliz, pés descalços, sapato na mão, sorriso no rosto, alma lavada, leve como deve ser. Em casa, guardo a deusa na caixinha de joias e volto à rotina. Semana que vem, levo ela pra passear de novo.


¹ Deusa grega da dança.

Sussurros ao vento

                   (Texto publicado originalmente o facebook da autora em 17 de maio de 2012)


       


      A preparação começa. O incenso se espalha. O rádio começa a tocar os batuques árabes do cd escolhido. As medalhas do lenço colorido chacoalham, já entrando no ritmo. Alongo os músculos, aquecendo-os, seguindo as batidas do derbak. A fumaça de almíscar já enebriava a sala e me tirava um sorriso do rosto. Meu cheiro favorito. Khadija estava vindo. Pego a espada e passo-a pelo corpo, energizando-me. Coloco-a na cabeça até achar o ponto de equilíbrio. Pronto. Os pulsos descem em movimentos sinuosos ao meu redor e imitam o redondo que faço com os quadris. 

       A meia-luz era perfeita, ajudava a entrar no clima marroquino. Já conseguia enxergar as dunas desenhando-se na parede. O sofá transformando-se numa tenda nômade e o abajur era a fogueira em torno da qual eu começava a dançar. A varanda com flores era agora o oásis onde os camelos dormiam. 
      O vento soprava e trazia areia, mas eu não sentia frio. Além da fogueira acolhedora, a dança me aquecia, de dentro pra fora. Os músicos tocavam só para mim. Um no derbak, outro no nai, um terceiro no tabla baladi e um último chorava as notas com uma voz intensa, porém doce. Única. 
   Outro sopro sussurrou: Khadija. 
      O tocador de derbak começou a sequência: 1-2-3-1-2-1-2-3-1-2... o quadril obedecia, a espada ainda na cabeça, devidamente equilibrada. Rodava aos sons sedutores, imitava os movimentos da cobra, da água, do fogo, da terra, e todas as representações da natureza que a dança do ventre permite. Tirava a espada da cabeça, brincava com ela em torno do corpo, colocava-a na cintura, no ombro, na mão, na perna, de novo na cabeça e então no chão. As batidas desaceleraram e um último sopro nos cabelos me fez abrir os olhos. 
      O abajur ainda estava ligado, intacto. O incenso estava na metade. Ainda dava para outra música. Vou ao rádio para trocar o cd. Egito, Líbia, Marrocos de novo, Índia, Síria. Não, Síria, não. Hoje quero Egito. Adoro dançar aos pés das pirâmides. Coloco o cd. Espada de novo? Não. Escolho o véu. Azul, verde, amarelo. Pego um laranja, quase vermelho, da cor que a minha alma estava. Fecho os olhos e sorrio, me preparando para a viagem. 
      Essa noite seria especial.
 

Derbak: instrumento de percursão.
Nai:instrumento de sopro, parecido com uma flauta.
Tabla baladi: parecida com a "zabumba" brasileira.